Como o smartphone se tornou ferramenta de justiça social

Sara Winchester
Sara Winchester
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Com as recentes agressões racistas gravadas em celular nos Estados Unidos, como a que causou a morte de George Floyd, e a denúncia enganosa de um negro supostamente “perigoso” no Central Park (que, no fim das contas, nada tinha de ameaçador), ficou evidente a importância do smartphone não só para a documentação do presente, mas como ferramenta de cidadania.

A câmera do celular, porém, nem sempre foi vista como o poderoso instrumento que de fato é. O primeiro celular munido de câmera foi lançado na Coreia do Sul em 2000. O aparelho tinha a capacidade de armazenar 20 fotos de 0,35 megapixels cada (para efeito de comparação, os smartphones atuais possuem câmeras que vão de 8 a 13 megapixels).

Nove anos mais tarde, saiu o primeiro aparelho celular capaz de gravar vídeos em alta resolução. Até então, grande parte dos fabricantes não investia muito na qualidade das fotos e vídeos capturados, uma vez que câmeras mais potentes, na época, tornariam o smartphone mais grosso. A ideia era que o público preferiria um celular fino, moderno, pequeno. Não à toa, o primeiro dos iPhones, cujas vendas começaram em 2007, tinha uma câmera de apenas 2 megapixels. Em 2011, a LG lançou um celular com duas câmeras de 5 megapixels, um grande avanço para o período. O aparelho, que ainda filmava em 3D, foi um desastre em termos de venda.

Atualmente, a maior parte dos smartphones filma na altíssima resolução 4k. Em um mundo onde uma parcela imensa da população leva um celular desse tipo no bolso – apenas nos Estados Unidos, 90% dos adultos entre 18 e 49 anos têm um –, o cidadão ganhou, com o avanço das câmeras embutidas em seus aparelhos portáteis, uma chance inigualável de documentar o mundo.

Gravar e fotografar virou obsessão. Nas redes sociais, fotos de pratos belíssimos e pontos turísticos facilmente reconhecíveis preenchem as telas. Selfies se tornaram um fenômeno da nova era. O assunto é tão presente que foi até tema de episódio de seriado. Em “White Bear”, capítulo da aclamada série distópica Black Mirror, o espectador é lançado em um mundo onde uma mulher desesperada foge de pessoas que tentam matá-la. Há diversas testemunhas ao redor, mas elas apenas observam e… filmam. Apáticos, divertindo-se com o sofrimento da moça.

Por ironia do destino e, independentemente dos planos dos fabricantes, as câmeras de smartphone levaram a um propósito muito maior do que fotos que refletem vaidade e ostentação. Esses celulares hoje permitem que seus donos coletem experiências coletivas sob a forma de mídia digital, que pode facilmente ser armazenada ou espalhada pela internet.

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Foi o que aconteceu com Darnella Frazier, jovem americana que gravou os suplícios finais e a morte de George Floyd, sufocado por um policial. A filmagem ganhou as redes e rapidamente chamou a atenção do mundo todo, levando a uma série de manifestações, tanto dentro quanto fora dos Estados Unidos, pelo fim da brutalidade policial e do racismo estrutural da sociedade contemporânea.

Alguns desses movimentos, impulsionados pelo assassinato de Floyd, culminaram na derrubada de estátuas de personagens históricos racistas por vastas multidões. Assim como Darnella, diversos participantes das manifestações sacaram os smartphones e gravaram toda a ação.

O caso da morte injusta de Floyd não foi o primeiro a ser gravado com um celular. Em 2014, Ramsey Orta filmou policiais agredindo um homem negro chamado Eric Garner com seu Samsung Galaxy. No ano seguinte, outro foi morto – e novamente gravado. Desta vez, seu nome era Walter Scott, que andava desarmado quando foi baleado por um policial. Em 2016, outro ataque contra um homem negro, chamado Alton Sterling, foi filmado.

A linha do tempo não deixa dúvidas: estamos falando de uma tendência que parece ter vindo para ficar. Atualmente, o smartphone pode ser considerado uma ferramenta de justiça, que auxilia no exercício da cidadania e na defesa dos direitos civis, sobretudo em relação a comunidades minoritárias.

Inevitavelmente, a análise da questão levanta a pergunta: quantos eventos históricos teriam sido diferentes se alguém tivesse filmado o que de fato aconteceu? Quantas injustiças teriam sido evitadas?
Um exemplo de caso que poderia ter tido um desfecho diferente é o dos cinco jovens negros injustamente presos pelo estupro e agressão de uma mulher no Central Park, em 1989. Raymond Santana, Kevin Richardson, Yusef Salaam, Antron McCray e Korey Wise tinham entre 14 e 16 anos na época. Os jovens receberam penas de cinco a quinze anos por um crime que jamais cometeram. Como seria se uma testemunha tivesse vídeos que comprovassem suas ausências na cena do crime?

As possibilidades para as gravações de smartphones são infinitas. Seja como for, é fato que a cidadania e a justiça social ganham novo significado nos dias atuais.

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