O fim da chama

Sara Winchester
Sara Winchester
5 Min Read

Quando se fala em tradições culinárias, o que vem primeiro à sua cabeça? Quase sempre imaginamos a cena com famílias em volta do fogão a lenha, a valiosa fonte de calor e nutrição dos lares ancestrais. Ou talvez você tenha pensado em uma etapa histórica anterior, com a tribo ao redor da fogueira, assando o que conseguiu caçar. Mesmo sem ter vivido estas épocas, não ignoramos o quanto o calor aplicado à comida foi determinante, afinal, para a evolução de nossa espécie. É na pré-história que se iniciam as relações entre a transformação do alimento e os consequentes desdobramentos do processo de evolução do ser humano. Foi cozinhando que conseguimos a carga de nutrientes necessária para fazer crescer o cérebro, sair das cavernas, estabelecer sociedades.

Com o calor, o homem passou a transformar a textura do alimento, tornando-o mais tenro para o consumo, exigindo menos esforço da musculatura facial e do sistema digestivo. A energia liberada serviu para o desenvolvimento do cérebro e da inteligência. Com o domínio do fogo, começou-se a desenvolver utensílios. É possível assim enxergar a trajetória da nossa espécie e da tecnologia aplicada a transformação dos alimentos.

A verdade é que evoluímos à luz das chamas que cozinham. No limite, toda viagem espacial se limita por não conseguirmos prover comida aos colonos astronautas, que assim permanecerão ainda por um bom tempo na ficção. Mas por falar em sobrevivência e longevidade da nossa espécie, estaríamos prontos a dar adeus ao ovo frito?

Para minimizar a emissão de gases do efeito estufa, algumas cidades no Estados Unidos, como São Francisco e Seattle, já começaram a banir o uso de fogões a gás. Pela lei, novos restaurantes já devem usar equipamentos com menor pegada de carbono. Chefs, gourmands, críticos culinários ou meros glutões, todos protestam com veemência contra a onda, para estancar seus efeitos e cancelar sua influência. Os benefícios seriam mínimos. E o sacrifício ao sabor para as gerações futuras, incomensurável, eles alegam. Há quem diga que texturas como crocância e muitos sabores são impossíveis de serem atingidos pela eletrificação da cozinha.

Dos modos mais rústicos de cocção ainda temos os cozidos que são feitos no chão, enterrados com brasas, tão tradicionais nos Açores. Na Guatemala, assam-se pães sobre as brasas eternas do vulcão Pacaya. E, claro, há a pizza preparada no forno a lenha de todo domingo, da qual as famílias das metrópoles não abrem mão há várias gerações.

Viciados em uma matriz energética fóssil e obsoleta, vemos que assar bolos e fritar pastéis estão com os dias contados. Sim, disseram a mesma coisa quando surgiu o micro-ondas. E muitos artistas fizeram passeata quando surgiu a guitarra elétrica. Entretanto, a novidade da vez já está aí. O cooktop de indução que gera calor por ondas eletromagnéticas já faz parte de milhares de novas casas. Se é por isso as novas gerações cozinhem cada vez menos, cabe pesquisar.

Resignados, podemos assistir as chamas se apagarem das cozinhas, fogão por fogão. Aos saudosos, resta testemunhar o que se configura, aparentemente, como o novo marco gustativo-civilizatório: o air fryer…

Compartilhe esse Artigo