Número de transplantes no mundo caiu 16% na pandemia

Sara Winchester
Sara Winchester
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Um estudo publicado essa semana na revista científica The Lancet Public Health mostrou que o total de transplantes realizados no mundo caiu 16% no último ano. A queda é consequência da pandemia. Em números absolutos, isso corresponde a 11.253 cirurgias de rim, fígado, pulmão e coração que deixaram de ser realizadas. Este é o primeiro estudo a analisar o impacto mundial do coronavírus na realização de transplantes.

Entre os 22 países analisados, em quatro continentes, o Brasil está entre os de pior performance, com redução de 29% no número de transplantes realizados. No entanto, em outros países vizinhos, como Chile e Argentina, a queda foi ainda maior: -54% e -61%, respectivamente. O país que mais sofreu com o problema foi o Japão, com redução de 67%. Entre as nações que se saíram melhor estão Estados Unidos (-4%) e Alemanha (-11%).

“A redução dos transplantes foi importante no Brasil tanto no ano passado quanto esse ano. Em 2019, estávamos em um aumento crescente de doador de órgãos por milhão de habitantes. Em 2019 foram 18 doadores por milhão de habitantes. Em 2020, esse número caiu para 15 [doadores por milhão de habitantes] e agora, para 13. É como se nós tivéssemos regredido para oito anos atrás. Mas esse não é um fenômeno exclusivo do Brasil. Aconteceu no mundo todo”. diz à VEJA o transplantador Huygens Garcia, chefe do serviço de transplante de fígado no Hospital Universitário Walter Cantídio, da Universidade Federal do Ceará, e no Hospital São Carlos, um dos mais importantes do país.

De acordo com os pesquisadores, o número de transplantes de órgãos diminuiu rapidamente durante os primeiros três meses da pandemia, mas essa queda se estabilizou a partir de junho, após a primeira onda, conforme os centros de transplante aprenderam a se adaptar. Porém, houve uma nova queda acentuada na atividade de outubro a dezembro de 2020, período que marcou a segunda onda.

“Uma das causas importantes é a negação familiar, que ainda é muito alta, atingindo 40% neste ano. Nós precisamos reduzir isso o mais rápido possível para aumentar o transplante de órgãos no país e salvar vidas”, ressalta Garcia.

O transplante renal foi o mais afetado

No mundo, o transplante de órgão que mais sofreu perdas foi o de rim, com redução de 19,14% no mundo. Em seguida está o de pulmão (-15,51%), fígado (-10,57) e coração (-5,44%). No Brasil, a maior queda aconteceu no transplante de pulmão (-56,82%), seguido de coração (-37,42%), rim (-32,89%) e fígado (16,51%).

Segundo Garcia, o maior impacto no transplante renal provavelmente está associada à possibilidade de adiar esse procedimento, sem risco de vida ao paciente, já que a hemodiálise consegue dar suporte até a realização da cirurgia. Por outro lado, a não execução dos demais transplantes impacta diretamente no risco de morte dos pacientes. Os pesquisadores estimam que o tempo de vida perdido pelos pacientes na lista de transplantes com o atraso gerado pela pandemia é superior a 48.000 anos.

Vale ressaltar que o estudo tem limitações, incluindo o fato de os dados não detalharem as razões para as reduções no volume das cirurgias em certas regiões e a não inclusão de muitos países, incluindo todos os africanos, devido a dados insuficientes.

Transplante de número 2.000

Apesar da queda no número de transplantes realizados devido à redução do número de doadores, a maioria dos serviços de transplantes não parou no país. Em especial aqueles de órgãos fundamentais para pacientes terminais, como fígado, coração e pulmão.

“O transplante de fígado não parou em nenhum serviço no Brasil. As pessoas na lista de espera são pacientes muito graves, com risco de morte a qualquer momento. A mortalidade na lista do transplante de figado é em torno de 30%.”, explica o transplantador.

Na quarta-feira, 25 de agosto, o serviço de transplante de fígado do Hospital Universitário Walter Cantídio, da Universidade Federal do Ceará, e do Hospital São Carlos, realizou o transplante de número 2.000. Trata-se de um paciente de Sergipe, que já teve alta. O serviço do Ceará é referência e atende pacientes de outros estados, em especial do Nordeste e Norte do país.

Entre os órgãos que podem ser doados, o fígado é o que tem maior flexibilidade de critérios para doação. Por exemplo, um idoso pode ser doador de figado. O mesmo não acontece com coração, pulmão e rins. Apesar dessa versatilidade e dos serviços não terem parado, o total de transplantes de fígado também diminuiu.

“Em 2019 fizemos 163 transplantes de fígado. Foi o recorde anual e acreditávamos que em 2020 o número seria maior ainda, mas veio a pandemia e a doação foi reduzida. Em 2020, fizemos apenas 112 transplantes.”, diz Huygens Garcia, chefe do serviço que realizou o procedimento de número 2.000.

Atualmente, cerca de 45.000 pessoas estão na fila de transplante de órgãos no Brasil. O país tem o maior programa público de transplantes do mundo, com mais de 98% dos procedimentos financiados pelo SUS. “E o mais importante: ele é transparente, com justiça social e sem privilégio”, afirma Garcia. A fila é única por estado, independentemente de a pessoa ter plano de saúde ou de sua condição financeira.

A doação de órgãos só pode ser realizada após um diagnóstico de morte cerebral, que no Brasil é extremamente rígido. Em seguida, são realizados exames de sangue para garantir que o paciente não tem doenças infecciosas ou outras condições que inviabilizem o procedimento. Além disso, é o momento em que a família é abordada. Tudo tem que ser feito muito rápido. O transplante de coração, por exemplo, deve ser feito em até 4 horas. O de fígado, em até 8 horas e o de rim, em até 24 horas.

“A família tem a palavra final. Por isso, o mais importante, para quem quer ser doador de órgão, é, em vida, deixar isso claro para seus familiares. Geralmente, eles cumprem o desejo do paciente”, diz o especialista.

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