Alexandre Borges conta como ‘parou tudo’ para cuidar da mãe com Alzheimer

Sara Winchester
Sara Winchester
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Percebi que a cabeça da minha mãe estava começando a falhar no Natal de 2019. Sempre tão lúcida e ativa, dona Rosalinda do meu coração, como a chamo, apresentava os primeiros lapsos de memória, falava coisas desconexas e já não lembrava o que havia almoçado. Tinha início ali, aos 80 anos, um novo capítulo em sua vida e em nossa história. Os médicos disseram que ela havia sofrido um AVC e a diagnosticaram com Alzheimer, a mesma doença degenerativa que minha tia, sua irmã, tivera anos antes. Por essa experiência na família, conhecia de perto o doloroso processo de desligamento que vai ocorrendo naturalmente. Tentei não entrar numa espiral de desespero. Era preciso reunir forças para cuidar dela e tranquilizá-la. Decidi então parar tudo e mudar para Santos, onde nasci e ela vive até hoje, para ficarmos juntos.

Sem poder receber visitas na pandemia, eu cuidava sozinho de 100% da rotina: ia ao mercado e à farmácia, cozinhava e limpava a casa. Fiz questão, no princípio, de que dormíssemos na mesma cama para supervisioná-la e estar a postos. Com ela já vacinada, às vezes esbarrávamos com um conhecido e, se eu percebesse que seu pensamento e sua fala se desencontravam, completava o raciocínio ou mudava o rumo da conversa. Com o tempo, acabei me tornando uma espécie de tradutor de Rosalinda. Nunca tentei corrigi-la. E assim fomos construindo uma relação de amparo e carinho, que lhe traz o conforto de que tanto necessita. Meus pais se separaram quando eu era bebê e, sendo filho único por parte de mãe, nós dois estabelecemos desde cedo uma ligação profunda. Dona Rosalinda sempre foi minha maior fã: quando estava gravando novela, ligava todos os dias para saber sua opinião. Ela ainda me assiste com os olhos vidrados na televisão, reconhecendo o filho na tela. Saí de casa aos 18 anos e retornei para este convívio tão intenso depois dos 50. Viver tal reencontro, nessa etapa da vida, tem sido algo muito especial.

O tempo se preenche com altos e baixos. Além dos passeios no calçadão e dos lanches no fim de tarde, todo dia temos um momento musical ao som de Roberto Carlos, Martinho da Vila, Elis Regina, Beth Carvalho, e por aí vai. A situação piorou desde julho do ano passado, quando minha mãe caiu, quebrou a perna e seu estado de saúde ficou mais delicado. Ela teve uma convulsão na minha frente e chamei a ambulância. Precisou fazer uma cirurgia complicada e passou dez dias hospitalizada. Achei que dessa vez a perderia, mas é uma piauiense guerreira: não se deixou abater e recebeu alta. Compreendi aí que o trabalho havia ficado mais árduo e formei uma equipe de profissionais para atendê-la em casa. Hoje, ela está numa cadeira de rodas e com a fala restrita, interagindo apenas com sua fisionomia, usando expressões faciais. Nada, porém, a impede de me mandar beijos e aceitar meus abraços cheios de afeto.

É claro que não é fácil ver alguém que você ama com todas as forças adoecer desse jeito. É um desafio constante assistir ao definhar do corpo humano e da vida. Dizem que cuidar de um idoso e de uma criança dá trabalho semelhante, mas discordo. A criança a gente cria e prepara para o futuro, enquanto, no caso de uma velhinha com uma doença sem cura, a tensão e o desgaste são permanentes. Estou aprendendo com minha mãe a aproveitar cada instante em que vivemos ao lado de quem verdadeiramente importa, ainda que essa parceria seja cercada de crescentes limitações. Pus o pé no freio na carreira para cuidar dela e, passada a fase mais crítica, agora tento retomar a vida, dividindo o tempo entre Santos, o Rio, para visitar meu filho, e alguns trabalhos em São Paulo. Tudo isso me fortalece para estar com ela. Enquanto há vida, há esperança.

Alexandre Borges em depoimento dado a Jana Sampaio

Publicado em VEJA de 4 de agosto de 2021, edição nº 2749

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